A Praticagem em um navio Full Container na visão de um Praticante de Náutica

A Praticagem se resume a um período de aprendizado. Você aprende tudo. Desde aquela matéria que não conseguiu entender nada na Escola até aquela que você achava que já sabia. Antes de começar a Praticagem a dúvida de muitos alunos é: “E se eu não lembrar de algum assunto?” Não tem problema, você vai lembrar. E se não lembrar, algo ou alguém vai te ajudar. É incrível a diferença entre ver tudo na prática e apenas estudar. Viver isso todo dia é o que faz você sentir que aprende. De uma maneira geral a Praticagem é isso: um período pra você perguntar, ir atrás, pedir ajuda, estudar, conhecer o navio, as peças, ferramentas, a tripulação, o funcionamento de tudo. É interagir.

A Praticagem no início

(Foto 1: Nascer do sol no Rio Amazonas/Acervo pessoal)

     O contato com a tripulação no início sempre é de bastante observação. Você sai com a mentalidade da Escola de que irão lhe julgar por tudo o que você fizer e disser e que todos estão ali para te cobrar exageradamente. Com o tempo você observa que não é bem assim. Todos ali estão confinados por um período razoavelmente longo, assim como você. Logo, você  percebe que a tripulação está sempre tentando achar alguma forma de descontrair, brincar, fugir um pouco da rotina. Em um navio é normal se reunir pra assistir filme, jogo de futebol e nos portos o pessoal sempre sai junto pra ir ao shopping, à praia, etc. Apesar desse clima sempre descontraído, nas horas que exigem concentração e seriedade, todos sempre são profissionais. Isso ajuda muito, principalmente a saber diferenciar esses dois momentos e sempre colaborar para um ambiente tranquilo.

Antes de embarcar, conversando com outros campanhas meus, a gente se perguntava se devíamos estudar algo antes de embarcar e o que seria importante. Bem, assim que a praticagem começa, leva um tempo pra você se acostumar a falar tudo na linguagem de bordo. Então uma matéria indispensável é Arquitetura Naval. No início é normal falar esquerda, direita. Com o tempo você se acostuma pelo simples fato de estar em um navio, vai usar diariamente nas operações de carga, manobra. É o que você precisa para se localizar. Relações Interpessoais também é uma disciplina bastante importante a bordo, usada 24 horas. Não precisa ser o melhor aluno da disciplina pra se dar bem em um navio, mas é importante saber, no mínimo, como resolver conflitos, lidar com pessoas totalmente diferentes e até mesmo aquela diferença de chefe e líder que tanto se fala em sala. Chegar a bordo sabendo conceitos básicos de Estabilidade, Manobra e Navegação também é importante mas, a bordo, os Oficiais sempre irão ensinar e supervisionar o que for preciso usar sobre isso. Sobre o inglês, o que eu tenho para relatar é que realmente o conhecimento é necessário, apesar de toda a tripulação falar português, todos os documentos, manuais, livros, e-mails e equipamentos estão em inglês. A língua também é importante para fazer a comunicação pelo VHF com outros navios e entender a mensagem deles. Eu diria que 90% de todo o conhecimento a bordo exige o inglês. Não é preciso ser fluente, ter morado em outro país, mas dominar os fundamentos da língua e saber a parte técnica da profissão em inglês é necessário. Como Praticante, quase sempre vai ter algum documento para traduzir, um livro para ler ou um manual que estará em inglês. É importante, como eu disse, mesmo em navios brasileiros. No início, a maior dificuldade que encontrei foi pra achar tempo livre. Os primeiros dias são bem corridos, assim como os dias em que estamos no porto ou prestes a chegar em um. É preciso administrar o tempo fora do serviço pro descanso, estudo, falar com a família, lavar roupa, refeições. Toda semana tem alguma atividade além do serviço de quarto, como: inspeção de equipamentos, testes e treinamentos com a tripulação, operação nos portos, etc; situações que fazem parte desse horário extra e que você precisa conciliar. Além disso, a bagagem que se leva a praticagem é sempre relativa. Vai acontecer de levar algo desnecessário ou sentir falta de um item esquecido.

(Foto 2: Chegada em Paranaguá-PR, um
dos portos atendidos pela empresa/Acervo pessoal)

     Sobre a rotina: Quando um Praticante de Náutica chega a bordo, ele é designado para tirar Serviço de Quarto com um dos Oficiais. Meu primeiro mês a bordo foi acompanhando um 2ON (Segundo Oficial de Náutica) que tinha sido meu veterano na Escola. O Serviço de Quarto tem duração de 4 horas no passadiço com 8 horas de descanso. Durante essas 4 horas a atenção é total para a navegação ou para acompanhar a movimentação de carga -caso o navio esteja no porto. As 8 horas entre um serviço e outro são usadas pelo Oficial para realizar suas inspeções de Rotina, isso inclui: os equipamentos de salvatagem, de combate a incêndio, manutenção da palamenta do bote da baleeira, etc. Todas essas atividades possuem um prazo e padrão de vistoria, então é uma atividade feita periodicamente pelo 2ON, sempre nesses horários livres. O Praticante funciona como um auxiliar, que acompanha o Oficial e aprende o que ele faz para no futuro, quando subir de posição, poder fazer também. Nos meses seguintes passei a tirar serviço com o Imediato, em funções diferentes do 2ON. A bordo, o Imediato basicamente cuida das operações de carga e lastro. É quem aconselha o Comandante sobre as condições que o navio tem de sair, é responsável pela disciplina da tripulação e gerencia a seção de Convés, que inclui os Oficiais de Náutica, Contra-Mestre, Marinheiros e Moços. Designa os trabalhos de manutenção do navio, pedidos de material, ferramentas, etc. Durante o período de serviço com o Imediato, as atividades eram bem diferentes e em um horário totalmente novo, então a rotina do Praticante depende bastante do Oficial designado para treiná-lo.

A Praticagem na navegação de Cabotagem alia o dinamismo das operações nos portos com a ciência de navegar e ver na prática toda a teoria aprendida na escola. A alta diversidade de lugares visitados pelo navio proporciona acúmulo de experiências e aumenta o leque de situações pelas quais o navio passa.

(Foto 3: publicações/Acervo pessoal.)

    

     Sobre a Navegação: O Passadiço é o local do qual o navio é comandado. Nos painéis é possível encontrar os equipamentos de auxílio à navegação, como: radares, carta eletrônica e indicadores de rumos. Auxílios à comunicação, como: Rádios VHF, SSB e Inmarsat C. Também há um painel de alarmes dos equipamentos e alarmes de incêndio, controle dos sinais de baixa visibilidade, planos dos equipamentos de combate a incêndio e localização dos equipamentos de salvatagem. É possível encontrar, ainda, pastas importantes para o gerenciamento do navio e publicações obrigatórias a bordo, como: SOLAS, Almanaque Náutico e RIPEAM, além dos manuais de todos os equipamentos. Durante o serviço no Passadiço, além de manter a vigilância, os Oficiais têm outras atribuições, como: plotagem da posição do navio, verificação dos equipamentos de navegação e comunicação, escrituração do Diário de Navegação e Bandalho.

(Foto 4: Mesa de comando/Acervo pessoal.)

O destino e o horário estimado de chegada (ETA) são definidos assim que o navio deixa o porto. Durante a navegação, o quarto de serviço tem duração de 4 horas, iniciando à meia noite com o 2ON, seguido pelo Imediato das 4h às 8h e pelo 1ON (Primeiro Oficial de Náutica) das 8h às 12h, retornando no próximo quarto o 2ON. As horas que o Oficial permanece no Passadiço durante o serviço são de total exclusividade para a vigilância e manutenção da boa navegação. O Comandante não participa do serviço de Quarto, porém é o responsável por tudo o que acontece a bordo. Por conta disso, sempre que qualquer Oficial tiver dúvida de como agir em determinada situação, o Comandante deve ser chamado, independente do horário. Fora dos horários de serviço, os Oficiais possuem outras obrigações, como o 2ON, responsável por realizar inspeções e manutenções nos equipamentos de segurança e salvatagem e combate a incêndio existentes a bordo. Os testes são periódicos e devem sempre ser mantidos em dia. O Imediato, por sua vez, é o responsável por coordenar os trabalhos de gestão pessoal, de reparo e manutenção do navio e da carga. Responde diretamente ao Comandante, coordenando os Oficiais, Contramestre, Marinheiros e Moços de Convés.

(Foto 5: embarque do Prático/Acervo pessoal)

     Sobre as atracações: Para que o navio possa atracar, é necessário estar dentro da janela. Isso significa estar dentro do prazo acordado entre a empresa e o porto. Fora desse horário, o navio não possui prioridade e precisa, quase sempre, fundear até que haja vaga. A atracação sempre necessita da ajuda do Prático, que presta serviço ao porto e ao navio. A presença do Prático a bordo não elimina a responsabilidade do Comandante, o qual sempre se faz presente na hora da manobra. Além do Comandante, o Imediato e o Timoneiro também estão presentes no passadiço. O 2ON e o 1ON coordenam a manobra na proa e na popa, respectivamente, operando os guinchos que movimentam as espias de amarração e cumprindo as ordens passadas pelo Comandante através do rádio. A comunicação é constante e só encerra quando a manobra está completa e as equipes de proa e popa são dispensadas. Apesar do Comandante ser o responsável máximo e o Prático passar as instruções, qualquer Oficial tem autoridade para questionar as ordens do Prático caso considere que são duvidosas ou ofereçam risco ao navio e à tripulação, ou avisar o Comandante sobre qualquer situação duvidosa. Para ajudar na manobra do navio, é necessário o auxílio de rebocadores na proa e na popa, que também são coordenados pelo Prático, a fim de aumentar a mobilidade do navio e realizar giros e deslocamentos até o cais.

    

(Foto 6: porão e rows/Acervo pessoal)

As operações de carga e descarga: Com o navio atracado e a escada de portaló arriada, é necessário esperar a subida do Planner para iniciar a operação de carga e descarga. O Planner é o funcionário do terminal que presta serviços para a empresa elaborando o plano de carga e descarga. Ele é responsável por selecionar onde os contêineres irão embarcar, respeitando a logística dos portos, para onde cada carga vai e a estabilidade do navio. Esse plano é repassado para o Imediato do navio, que analisa e decide se há condições de ser feito de tal forma. Após ambas as partes concordarem, a operação pode ser iniciada. Os contêineres são introduzidos a bordo e podem ser localizados através de três elementos: Bays, Rows e Tier. As Bays são contadas a partir da Proa até a Popa. As Rows são contadas a partir da meia nau, seguindo para bombordo e boreste. As Tiers são contadas da parte mais abaixo do porão até a altura máxima permitida no convés. A partir desses três elementos, é possível identificar a posição qualquer contêiner no navio.

(Foto 7: telégrafo da máquina/Acervo pessoal)

     A função do Oficial de Náutica: Nos portos, a divisão de Quarto de Serviço permanece a mesma, tendo duração de 4 horas para cada Oficial. Durante a operação, o Oficial de Náutica é responsável por acompanhar a entrada e saída de contêineres, verificando quais setores já foram carregados e descarregados e como isso está sendo feito. Também é responsável por verificar se há algum contêiner avariado, se o navio está bem adriçado e se a movimentação de carga não está afetando a estabilidade da embarcação. O Oficial de Náutica tem autonomia para tomar qualquer decisão a fim de preservar a segurança da operação. Durante o quarto de serviço, o Oficial é auxiliado por um Marinheiro de Convés, que ajuda a monitorar a operação, peação da carga e condições das espias de amarração, para evitar que rompam com a variação de peso do navio, e também por um Moço de Convés ou de Máquinas, que ajuda controlando a entrada e saída de pessoal, contribuindo para que ninguém tenha acesso ao navio sem ser autorizado.

(Foto 8: popa atracada/Acervo pessoal)

     Sobre as desatracações: o navio também precisa dos serviços de um Prático. Após toda a carga ser posta a bordo e for certificado que a peação foi feita da maneira correta, o navio está pronto para deixar o porto. Caso o Comandante decida que o navio não tem condições seguras de desatracar, seja por condições de estabilidade, segurança da carga ou equipamentos inoperantes, o navio pode e deve permanecer atracado até que todos os problemas sejam sanados. Assim que o Prático embarca, ele discute as intenções de manobra com o Comandante e, havendo acordo entre ambos, passa-se aos tripulantes como será feito. Como na atracação, o 2ON e o 1ON coordenam cada um desses setores, enquanto o Imediato permanece no Passadiço como auxiliar do Comandante. Também do passadiço, através do rádio, o Prático coordena os rebocadores envolvidos na faina de afastar o navio do cais e auxiliar na manobra. Após desatracar o navio e afastar-se até o ponto onde o serviço de praticagem não é mais obrigatório, desembarca-se o Prático, o qual desce pela escada quebra- peito até sua lancha. Então, o navio está novamente pronto para seguir viagem e voltar à sua rotina de navegação.

(Foto 9: nascer do sol na Baía de Santos/Acervo pessoal)

 

TEXTO – Al. Paiva

REVISÃO – Al. Gurgel

Al. Paiva

Presidente do Jornal Canal 16, Representante do CIABA Solidário, Guarda Bandeira e cursando o 3º ano do curso de Máquinas.

Você pode gostar...